quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Seu Alberto


Eram quase seis da tarde. Os últimos cinco minutos da vida profissional de Seu Alberto arrastavam-se em discordância com sua ansiedade. Mudo, ao canto da sala observando o relógio, acompanhava com os olhos os ponteiros de segundos cravarem sem piedade infinitos espaços de tempo. Não lhe escapava, entretanto, a indiferença do pessoal da repartição, na qual trabalhara os últimos vinte e cinco anos de sua vida, com sua tão sonhada aposentadoria. Lembrou-se quando deixou a empresa de contabilidade onde trabalhou os primeiros vinte anos de sua vida profissional, quando ainda jovem passou em concurso público, e seus companheiros lhe saudaram com uma garrafa de vinho tinto nacional e uma noitada na Lulu, prostíbulo famoso da região boêmia de Belo Horizonte. Hoje, com salário defasado e praticamente um estranho entre os tantos jovens que tomaram lugar de seus companheiros já aposentados ou falecidos, cumpria incógnito os últimos momentos de sua vida laboral, sem sequer um aperto de mão ou agradecimento por parte do recém-empossado chefe da repartição, ou de qualquer colega. Na verdade não havia contado a ninguém que se aposentaria naquela quinta-feira. Não tinha intimidade nem interesse que ficassem sabendo de detalhe tão pessoal de sua vida. Faltava agora um mísero minuto. Olhou antentamente, com um certo tom de melancolia, as coxas da estagiária que já se dirigia à porta, com sua tradicional saia quase-curta, sempre tolerada pelos (sempre homens) superiores. Imaginou pela última vez a juventude contida naquela moça, de quem sonhava sorver tal atributo, emaranhando-se naquele corpo quase infantil. Logo se esqueceu. A lascívia há muito deixara de habitar a imaginação daquele senhor de já 65 anos de idade por mais de alguns instantes. O último segundo completou seis horas da tarde. Soou seco e insosso. Seu Alberto se levantou da mesma forma que fez durante toda sua carreira, com calma  paciência. Nem a ansiedade de estar logo livre lhe impulsionou a derrubar uma caneta ou qualquer atitute precipitada ou inconsequente. Dirigiu-se ao relógio de ponto pela última vez e marcou seu cartão. A liberdade, enfim muito próxima, residia ao lado externo do prédio do Tribunal. Caminhou lentamente, como se quisesse aproveitar os últimos momentos de uma vida que não deixaria saudades. Do lado de fora do portão paraceu-lhe que o ar estava mais puro, mais leve. Não se preocupara mais em pegar o primeiro ônibus: não havia hora pra chegar em casa, pois não levantaria cedo na manhã seguinte. Esperou então o terceiro ônibus da sua linha, já um pouco mais vazio, e seguiu pra casa, do outro lado da cidade, na Vila Martins. No caminho olhava afora a janela e se deliciava com o tempo, com as fisionomias, as luzes, as idiossincrasias da cidade grande. Desceu na Av. Paraná e pegou a segunda condução, última até seu destino final. A pouco mais de vinte minutos de casa começou a imaginar como seria sua vida agora, livre de trabalho e com o parco dinheirinho a disposição para aproveitar o que lhe restara de vida. Estava velho já pra namorar, então descartou logo o baile da terceira idade que acontecia toda quarta mas que nunca podia ir por força da profissão. Pensou em estudar, mas acovardou-se com a ideia de passar anos a estudar algo que não exerceria profissionalmente, que não lhe ofereceria resultado prático. Ademais, faculdades particulares consumiriam boa parte de sua renda e seria ridicularizado pelos mais jovens, ou ignorado, como acontecera na repartição. Não tinha conhecimento suficiente pra ingressar na faculdade federal. Pensou em viajar, mas não sabia para onde. Não tinha amigos a visitar, não tinha irmãos e seus pais há muito haviam falecido. Não gostava de praia e julho não era o mês ideal, mesmo se quisesse "inventar". O interior lhe lembrava da infância pobre que queria esquecer, da pequena cidade de Pouso Triste, e dos amores adolescentes que ficaram pra trás. Se assutou quando viu seu ponto. Num rompante puxou a corda que dá sinal ao motorista, quase em cima da parada, e viu o condutor ignorar seu apelo tardio. Desceu no ponto seguinte, num cruzamento escuro da rua Direita com o beco das garças, entrada da favelinha do bairro. Parou no bar pra comprar cigarros: decidira naquele momente que seria fumante, hábito que repugnou por toda a vida, mas que preencheria seus dias com a inconsequencia da juventude que ele nunca teve. Foram mais ou menos dois minutos de ação. Naquele instante, três jovens invadiram o buteco com armas em punho e renderam todos os clientes. Dois do lado de fora, entre as mesas na calçada, e o terceiro adentrou o recinto e se dirigiu ao caixa. No momento em que anunciou o assalto, Alberto alcançava o bolso traseiro de sua calça para buscar a carteira e pagar pelo novo vício. O rapaz, de uns 17 anos mais ou menos, que realizava naquele momento seu primeiro assalto a mão armada, imaginou que o velhinho estava a buscar uma arma. Disparou 4 vezes. Uma na cabeça, fatal, e mais duas no peito e uma à altura da pélvis, já com o corpo no chão. Levou todo o dinheiro do caixa e dos bolsos de Seu Alberto, fugindo logo depois num Golf preto que acabara de ser roubado de um playboy na zona sul. Seu Alberto não tinha amigos nem parentes. Poucos do bairro sabiam quem ele era e ninguém apareceu no enterro, só o dono do bar e o padre da igreja que Seu Alberto frequentava todo domingo para assistir a missa e confessar seus sonhos pecaminosos com a estagiária da repartição. Agora sem pecados ou cigarros, seu corpo jaz em vala comum, sem férias ou viagens, apenas mais um pedaço de carne se putrificando na terra, adubando a grama do cemitério municipal. Não se preocupava mais com o que fazer com sua nova vida.

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