quinta-feira, 26 de março de 2009

Ilusões



Ele nasceu num dia claro, uma manhã comum de um mês de maio qualquer. Nasceu forte, um pouco abaixo do peso mas saudável. Parecia uma criança normal. Era o terceiro filho de uma família de classe média, nasceu de cesariana no hospital mais conceituado da capital. Teve uma infância normal, sem problemas financeiros na família, sem problemas de saúde (tirando uma tia doida que já havia sido internada diversas vezes), sem maiores preocupações. Fez o jardim num colégio privado da zona sul, a poucas quadras de sua casa. Tinha amigos e colegas que frequentavam sua casa e vice-versa. Assistia desenhos pela manhã e estudava à tarde, fazia futebol a noite e inglês uma vez por semana, isso ainda aos 6. Era uma criança extremamente feliz e contagiava a todos ao seu redor. Parecia maduro demais pra sua idade e ao mesmo tempo completamente descontraído e e alegre, aceitava sempre o que lhe acontecia de bom grado, sem os mimos e pirraças típicos da idade e da classe social. Tinha tudo pra ser o mais bem-sucedido da família, desde pequeno se enxergava em seus olhos um brilho e uma inteligência singular. Resolvia problemas de forma espantosamente simples e esbanjava cognição para uma criança daquela idade. Sua vida mudou precisamente aos 9 anos de idade, no mês de julho, férias escolares. Ainda longe de qualquer maturidade afetiva, jamais havia sequer cogitado qualquer envolvimento romantico com uma menina e as odiava por definição, pois, claro, não tinham qualquer aptidão para jogar bola, e brincavam de coisas completamente esdrúxulas como bonecas e casinha. Ele emudeceu. Descia ao térreo do prédio de seu colega para brincar de algo que não me lembro mais, quando avistou a pequena. Ela tinha mais ou menos a sua idade, talvez um ano mais velha, olhos azuis como o céu de julho e cabelos negros como a noite. A pele branca parecia refletir o sol e seu jeito meigo chegava a ser cruel. Não sabia o que fazer, ficou estático, imóvel e só voltou a si depois de que seu colega o atingiu com a bola na cabeça. Passou a tarde a admirar tal anjo. Sim, pois não podia ser apenas uma menina, daquelas que ele odiava, era um anjo, algo divino, inexplicável. Despertou para o amor como um paciente que sai de um coma profundo após 9 anos. Começou a vida ali. A tarde passou e ela se foi. Ao cair da noite, desceu novamente o elevador e se encaminhava para a portaria, para aguardar o motorista que logo chegaria, quando parou no 4 andar. Ela entrou sozinha, e eles se olharam por mais 4 andares, a porta se abriu e num gesto simples ela sorriu e lhe beijou os lábios, de uma maneira infantil, um pequeno estalinho de meio segundo. Se virou e se foi, desta vez pra sempre. Ele jamais esqueceu aquele gesto, foi o combustível de sua vida por vinte anos que se seguiram. Se viciou, se apaixonava constantemente e a alegria de viver agora transbordava, saltava aos olhos, era um romantico incurável. Foi ridicularizado por vezes por seus colegas e amigos, falava de amor já desde os 12 anos. Namorou a menina mais linda do colégio e todas as outras suspiravam quando ele passava. No segundo grau ficou famoso no colégio por dispensar a garota mais popular de todas: simplesmente não a amava. Não era rico, gostava de filosofia mas não tinha barba, adorava o lúdico mas se encantou pela ciência. Fez vestibular pra Medicina e foi aprovado, longe dos primeiros colocados, claro. Teve o primeiro relacionamento adulto aos 20 anos de idade. Como todas as outras, ela era linda, inteligente e tinha como melhor qualidade saber passar horas conversando. Parecia perfeito, foram 3 anos de namoro, ele já estava fazendo residência num hospital grande da capital, era aluno de destaque e ninguém duvidava do futuro brilhante que o rapaz teria pela frente. A família só falava dele, dos prêmios que recebera, da linda menina que iria se casar, do equilíbrio emocional singular, da coragem e liderança do rapaz. Foi numa sexta-feira quente de dezembro, festa do final do ano do pessoal do hospital, acompanhado de sua noiva que aconteceu algo anormal. Alcançava um copo de cerveja da bandeja do garçon que viu de longe a menina dos olhos. Continuavam azuis. O mundo se fez em um silêncio ensurdecedor. Não via nada a sua frente e não ouvia ninguém a sua volta. Virou-se novamente pra sua acompanhante e não sentiu nada. Aquela moça com que estava disposto e ansioso a passar o resto de sua vida agora já não lhe despertara sequer compaixão. Um mar de indiferença que ele jamais havia experimentado se apoderou do seu corpo e de sua alma, como se o amor fosse um líquido que tivesse escorrido em alguns segundos pelo ralo da pia. Nem ao menos chorou. Disse a ela, como se pedisse um café em um bar qualquer, que não a amava mais, que não suportaria mais passar um segundo de sua vida ao lado dela. Não se falava de mais nada em seu meio. Como e porque ele fez aquilo. O homem já não era mais tão doce como o garoto, já não era feliz, já não amava ninguém, era rude com os que lhe cercavam e destratava sua família. Não completou a residência: foi expulso do hospital por agredir um paciente que se recusava a tomar um remédio. Se afundou em livros. Procurou psicólogos e psiquiatras. Queria saber porque não sentia mais nada. Seria possível que houvesse gastado todo o sentimento de sua vida nos primeiros 24 anos, e agora era incapaz de sentir? Ou foi a lembrança de um amor tão simples, tão infantil, que havia estraçalhado a realidade fútil de sua vida adulta? Só havia uma solução. Precisava encontrar aquela moça. Fez contatos com amigos e descobriu quem a havia levado àquela festa, por coincidencia era primo de um grande amigo seu. Conseguiu seu telefone e teve coragem de ligar. Ela se lembrava dele sim, com detalhes, e aparentemente aquele beijo havia marcado também a vida dela. Se encontraram e ele reencontrou a felicidade. Se reapaixonaram como se nunca houvessem se afastado, se amaram como se fosse donos do amor do mundo, se entregaram um ao outro como se não houvesse amanhã. Ele voltou a faculadade e concluiu a residência, se tornou médico importante e abastado. Ela era psicóloga, não era famosa mas tinha consultório próprio e gozava de algum respeito entre a elite. Não esperaram dois anos e já estavam casados, com um filho a caminho. O sinal fechou e ele não viu, a caminhonete o pegou de lado e ele desmaiou instantâneamente. Acordou no hospital, sem o braço esquerdo, o olho esquerdo e com várias cicatrizes no rosto e no corpo. Foi aposentado por invalidez e recebia um salário miserável da previdência. Suas economias e as da família se esvaíram em tratamentos pós operatórios, para conter a dor e evitar hemorragias ou derrames. Sua esposa não trabalhava mais tanto pois precisava cuidar dele, que ensejava cuidados especiais, e do recém-nascido. Já morava agora num dois quartos na Zona Leste, não ia mais a restaurantes chiques nem frequentava as festas da elite. Aos poucos já não via mais na sua esposa a paixão de antes. Era mais uma enfermeira ou coisa que o valha. Começou a se tornar independente novamente, já podia ajudar na casa, a cuidar da criança, mas jamais voltaria a clinicar. Estava fadado à mediocridade, mas se contentava com o amor da mulher e do filho. A moça já apresentava sinais do cansaço, a beleza de antes já não era tão reluzente e o marido nem de longe lembrava mais a imagem do moço por quem se apaixonou por duas vezes, era apenas um aleijado ao qual devia cuidados, não por amor, mas por conveniência, diria que até por pena. Não apresentou muita resistência quando o jovem fisiologista da clínica começou a flertar com ela, era alguns anos mais jovem, independente financeiramente e esbanjava a vitalidade extirpada de seu marido-fardo. Conscientemente tratou de se engravidar do rapaz, e exigiu com autoridade que ele assumisse a criança. Era uma sexta-feira tão quente como aquela de dezembro quando ele se apaixonou novamente por ela, mas dessa vez chovia e muito. Ela entrou em casa molhada, se dirigiu a ele, que assistia televisão no sofá da sala, com a mesma indiferença e desamor com que ele dispensara a ex-noiva 5 anos atrás, proferiu-lhe a sentença do resto de sua vida, ele mudo, não respondeu. Ela apanhou algumas mudas de roupa do armário, arrumou a criança e se foi, não sem avisar antes que mandaria alguém para buscar o resto de suas coisas. Meses depois ele foi condenado a pagar pensão ao seu filho e vivia agora praticamente de um salário mínimo. Via o filho uma vez por mês, por algumas horas, e este já chamava o padastro de papai com mais intimidade que a ele mesmo. Voltou a casa da mãe e morreu sentado em sua cadeira aos 32 anos de idade. Há três já não sentia mais o mundo. Não conseguia nem por um segundo sentir qualquer tipo de emoção em qualquer tipo de situação. Dizem que morreu de tristeza, mas não é verdade. Não poderia se atribuir a ele sentimento tão intenso. A certidão de óbito dizia "falência múltipla de órgãos", o que muitos atribuiam, também errôneamente, aos maus fins do acidente. A verdade é que os órgãos que faliram enfim, há algum tempo perderam a razão de funcionar. Pulsavam dentro de um corpo desprovido de qualquer alma. Em determinado momento se lembrou daquele dia de julho, 23 anos atrás, quando descobrira o amor. Teve consciencia então que a coisa mais sublime pela qual se era digno viver não passava de uma ilusão infantil, que se vivia até a idade adulta e alguns até a velhice. Deciciu morrer naquele momento porque chegou à verdade antes da hora, desmistificou a beleza da vida e não vislumbrou algo mais a se viver por. Fechou os olhos como se fosse dormir e deixou pra trás a amargura de saber que nos preenchemos todos de um vazio sem esperanças de se preencher, senão por ilusões.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Eu prefiro ser...


O tempo passa e as coisas insistem em mudar. Cada segundo, por mais monótono que seja, proporciona à existência a possibilidade da transformação. Alguns segundos, claro, são mais importantes para uns que para outros. Alguns momentos ficam guardados, outros esquecidos, mas a mudança é constante. Eis que na grécia realmente se pensava: um homem realmente não se banha duas duas vezes no mesmo rio. E aonde fica a essência? O que realmente somos? A minha resposta, talvez severa, é que em essência somos uma sequência completa de transformações, em que absolutamente tudo é passível de mudança. Talvez se pense que tal afirmação seja triste, afinal, se não temos valores essenciais, se não somos algo definível, desperta-se, num primeiro momento, uma ideia de vazio, de fragilidade, de inexistência concreta. Enganam-se os que assim pensam. É a face mais bela da existência: a delícia de crescer, de se transformar, de se tornar melhor sempre, de aprender, a capacidade irrestrita de a cada segundo conhecer o mundo de uma forma diferente, de se recriar. É a possibilidade da eternidade, mesmo limitada pelo tempo, pelo curto ciclo da vida. Que triste seria ser Deus, incapaz de se tornar melhor, inapto a aprender, a errar... Que perfeição divina é essa que exclui do seu rol de qualidades a mais apaixonante de todas, que é a metamorfose? Não, obrigado. Me recuso a venerar alguém que se quer pode mudar de ideia. Não me julguem mal, aqueles que acreditam que existem pessoas boas e más, elas podem sim, existir, mas não por essência. São ações e reações psico-sociológicas que formam e solidificam ao longo do tempo a personalidade das pessoas. Mas como diria Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar. As coisas mudam, as pessoas mudam, as ideias mudam e até os sentimentos mudam. Não quero dizer que se desfazem, muito pelo contrário, o desafio é sempre acrescentar, crescer, descartar o que se descobriu errado e agregar o novo até então inequívoco. Algumas pessoas terão o prazer de aproveitar essa curta oportunidade que temos nessa vida, outras se acomodarão e permanecerão quase imutáveis, ignorando a única coisa com que realmente nascemos dotados: o lívre-arbítrio, a fenomenal faculdade de sermos quem queremos ser. A estas não deixo meus sentimentos, não contribuem com nada nesses mundo, só com o aumento das tristezas coletivas e individuais. Às outras, meu muito obrigado, realmente vou precisar de ajuda nessa guerra contra o continuísmo. Revolucionários de todos os países, uni-vos!

Borboletas

Butterflies: Yesterday, she left. Tucked away a couple dreams into the old backpack, tidied up her blouse inside her trousers and left. My eyes, hanged on the edge, with the foolish hope that she would turn back and decide to stay, at least for one or two more forevers. But she did not, left only a smile in my eyes and went away. From each step, each mark plunged into he floor, a blue flower grew joyous and i could see where she was, revealed through the butterflies. Yes, because the flowers - what a trick - were not blue petals, were wings of butterflies that, in a dash, flew all back to the sky, like thousands of gas baloons, inaugurating the deep between us. And because the love still warm in the chest, the tears sticked in the face, like candle drops, hardened. Butterflies.

Rita Apoena
(Livre tradução)

terça-feira, 17 de março de 2009

Brilho eterno de uma mente com lembranças


Passaram-se mais ou menos 10 anos desde a última vez em que estivemos juntos. De comum a todos somente a lembrança de um tempo em que, apesar do mar de inseguranças e incertezas, gostávamos de compartilhar nossas vidas uns com os outros, de uma maneira ou de outra. Pequenos momentos que se eternizaram pela saudade contida naquela adolescência latente e na descoberta coletiva de um novo mundo. Grandes amigos, parceiros, companheiros, amantes? Não, éramos colegas de escola. Alguns se tornaram grandes amigos, outros amantes, companheiros, namorados, outros se distanciaram, se esqueceram uns dos outros, seguiram rumos diferentes. Mas aqueles dias que compartilhamos dentro dos muros do Colégio Sagrado Coração de Maria, bem ali, escondidinho na Rua Estevão Pinto, esquina com Palmira, no bairro da Serra, esses sim, jamais serão esquecidos por nós. E foi por esses dias que estivemos juntos no último sábado, dia 14 de março de 2009, na busca de reviver, por algumas horas, toda a magia relegada há muito a pequenos momentos de lembranças nostálgicas, logo esquecidos e guardados novamente num canto escuro e intocável da nossa imaginação. Bem que eu gostaria de ser capaz de transformar em palavras o que ocorreu naquele dia, e poderia até fazer uma narrativa bem detalhada dos fatos, mas isso não importa. O que sentimos e o que vivemos, em uma tarde ordinária de um mês de março qualquer, não pode ser reduzido a texto... e nem deve. Há momentos na vida em que nem o mais competente dos poetas se atreve a eternizar. São pequenas peças que só possuem valor por existirem em nossas cabeças e nossos corações. A vida não é mais a mesma de 10 anos atrás, pra nenhum de nós, mas por algumas horas fomos extremamente competentes na tarefa de recriar um ambiente que por uma década nos deixou enormes saudades. Talvez no dia 14 de março de 2019 possamos nos ver de novo, com alguns encontros a mais a relembrar, mas isso não impera agora. Vou dormir, tenho muito a me lembrar, de uma década atrás e também do último sábado. E por mais louco que possa parecer, acho que o último sábado leva uma ligeira vantagem em minha predileção. Afinal, não é do concreto que tenho saudades, mas das pessoas. Algumas das quais será sempre um prazer reencontrá-las em alguns sábados à tarde, outras que continuarei a rever praticamente todos os dias ou semanas da minhas vida, e outras que terei o prazer de me empenhar em trazê-las pra perto de mim, que descobri que importam muito mais que eu imaginava, e que infelizmente estiveram distantes... espero que nunca mais.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Escolhas


Como marxista devo admitir que as estruturas econômicas são determinantes nas formação das estruturas sociais, que por sua vez derramam ideologia por todas as partes. Entretanto, a razão da qual é dotada o ser humano nos permite, em determinadas ocasiões, a escolha. Mesmo incluído em um meio absurdamente alienado e conformista, diria até reacionário, tive em algum momento da minha vida a opção de pensar. Não sei exatamente quando isso se deu e como foi o ocorrido, mas essa escolha me transformou em alguém completamente distinto das pessoas do meu meio social. Longe de mim dizer que estou certo ou errado, que sou mais ou menos inteligente ou culto que qualquer pessoa que me cerca, mas, certamente, meus olhos veem o mundo de forma diferente. Não me é mais possível enxergar os fenômenos interpessoais como "naturais" ou "adequados". A cada simples gesto de interação, seja ele simplesmente uma conversa entre duas pessoas ou uma notícia de telejornal, minha mente busca de forma implacável a razão ideológica da abordagem e do conteúdo. Talvez por isso as únicas coisas que costumo tolerar na televisão são comédias de situação e alguns raros filmes policiais ou dramáticos. Futebol também me atrai, desde que seja sem áudio, para me poupar da venacidade dos narradores e comentarista a serviço do entretenimento alienante. Por diversas vezes imaginei que seria melhor que minha escolha pela verdade não tivesse ocorrido. Por certo sofreria muito menos, não haveria em mim a necessidade de encontrar alguém como eu, alguém que eu imagine valer a pena me esforçar em compartilhar parte ou toda a minha vida. Meninas e mulheres lindas e vazias parecem brotar das ruas de Belo Horizonte. Quisera eu enxergar a beleza até o limite dos olhos, como já fiz por vezes. Fui vencido pela ideologia a qual não pude me render. Escolhi o mundo fora da bolha da superficialidade, e, de veras, não existem muitas pessoas com as quais se relacionar desse lado. E por mais que saiba que as chances de encontrar o amor além da superficialidade das relações capitalistas, contruído com respeito e admiração mútuos, livre por escolha e verdadeiro por definição, não me arrependo por um minuto de ter escolhido em algum momento pensar o mundo (e transformá-lo) por mim mesmo, sem aceitar as verdades impostas pela ideologia dominante. Apesar de saber que o caminho que escolhi é o mais árduo, em nenhum momento da minha vida tive dúvidas que é o correto. E se mais tarde se provar inepta minha busca pelo amor, o que importa? Me vale mais mil sonhos de um amor verdadeiro que mil anos de um amor irreal.